quarta-feira, 27 de agosto de 2008

STF começa a julgar disputa na Raposa Serra do Sol



O modelo de demarcação de terras indígenas no país estará em discussão no Supremo Tribunal Federal, a partir desta quarta-feira. O julgamento de uma ação popular referente à reserva indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, deverá abrir um precedente para as outras demarcações realizadas em território nacional.

A questão central da análise dos ministros refere-se à demarcação contínua ou em ilhas, ponto-chave da polêmica em torno da reserva de Roraima, de 1,7 milhão de hectares. Na região, vivem cerca de 18 mil índios, de cinco etnias: macuxi, wapixana, ingariko, taurepang e patamona. E também um grupo de arrozeiros, que quer assegurar sua permanência no local.

"É um grupo pequeno, de seis arrozeiros, que ainda está lá", argumentou o líder Macuxi Jacir José de Souza. Ao participar de um encontro no Ministério da Justiça para debater o tema, ele afirmou "confiar" na decisão do STF. "O governo já decidiu sobre a demarcação, então vamos lutar para que o Supremo reafirme o que já foi decidido."

A reserva foi demarcada em 1998, mas a homologação presidencial veio apenas em 2005. Desde então, o Supremo já recebeu 72 ações contestando a demarcação. A petição que será julgada (número 3388) foi ajuizada pelo senador Augusto Botelho (PT-RR).

Os ministros devem analisar se a demarcação encontra amparo na Constituição Federal ou se precisará de mudanças. O artigo 231 da Constituição diz que são reconhecidos aos índios "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."

O parágrafo segundo completa: "As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes." O artigo prevê ainda que os direitos sobre as terras são "imprescritíveis".

O consultor jurídico do Ministério da Justiça, Rafael Thomaz Favetti, lembra que a decisão do STF será "um símbolo ao traçar um modelo constitucional para todas as outras demarcações já feitas e aquelas que ainda serão feitas."

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) existem no Brasil 621 áreas indígenas, sendo que 148 delas ainda não estão delimitadas.

STF: tendência pela demarcação em ilhas

Alguns indícios levam a crer que os ministros do Supremo podem decidir pela demarcação de terras indígenas no Brasil de forma não-contínua, o que garantiria a permanência dos arrozeiros na região da Raposa/Serra do Sol.

O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, já declarou que considera conflituosa a demarcação contínua. Mais tarde, ao ser questionado sobre o tema em entrevista coletiva, alegou que havia falado apenas "em tese". "Só disse que causa espécie muitas vezes grandes extensões principalmente no caso específico em que havia núcleos habitacionais e até municípios dentro dessa área."

A posição do ministro foi criticada por Dalmo de Abreu Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da USP. Para ele, Mendes não teria a "isenção" e a "imparcialidade" necessárias para participar do julgamento.

O jurista justificou sua opinião - emitida em mais de um evento para debate da reserva - dizendo que Gilmar Mendes, quando era advogado-geral da União, teria assessorado o então ministro da Justiça Nelson Jobim (hoje ministro da defesa do governo Lula) em uma tentativa de reverter demarcações já realizadas.

Em coluna publicada no último dia 10, Josias de Souza antecipou um prognóstico de Jobim, que, em conversa reservada com o presidente Lula, teria afirmado que o tribunal vai mesmo rever a natureza contínua da Raposa/Serra do Sol. Para tentar evitar conflitos na região, o governo mobilizaria a Polícia Federal (PF) e a Força Nacional de Segurança.

O Supremo já negou anteriormente pedidos de anulação da demarcação na Raposa/Serra do Sol. Mas também já decidiu pela permanência dos arrozeiros até que a questão fosse debatida de forma mais ampla. No início de abril, o tribunal suspendeu a Operação Upakaton 3, da PF, para retirar os não-índios da região, ao deferir um pedido de liminar feito pelo governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB). Na ação, argumentava-se que a saída dos agricultores afetaria a economia do Estado.

No mês seguinte, o ministro Carlos Britto também não acatou pedido feito pela União e pela Funai para que fosse feita busca e apreensão de armas, munições e explosivos na terra indígena. O pedido foi feito depois de conflitos na região. Para o ministro, a competência para avaliar a questão específica de ameaça a indígenas era da Justiça Federal de Roraima.

Dois lados

A ação que será analisada contesta a demarcação argumentando que o processo não contou com a participação de todos os interessados, incluindo parte da população indígena, produtores agropecuários e comerciantes. Também lembra que "não-índios" que habitam a região há várias gerações serão obrigados a abandonar o local no qual estão integrados.

O governo de Roraima reclama ainda que a demarcação contínua da reserva chega a 7% do território, levando o Estado a ter 45% de sua área ocupada por indígenas, inviabilizando o desenvolvimento econômico. Outro argumento diz que, por ocupar uma faixa de fronteira com a Guiana e a Venezuela, a reserva colocaria em risco a soberania nacional.

O procurador do Estado de Roraima, Régis Jereissati, afirmou que o "vazio demográfico" existente na reserva incentivaria crimes como a biopirataria. Em debate sobre a demarcação, ele defendeu uma delimitação do que é e do que não é terra indígena, para garantir o desenvolvimento, já que o cultivo de arroz seria fonte de emprego e recursos para Roraima.

No final de abril, a Procuradoria Geral da República (PGR) enviou um parecer sobre a matéria para o ministro Carlos Ayres Britto, relator da ação no STF. O documento elaborado pelo vice-procurador geral Roberto Monteiro Gurgel Santos considerou plenamente regular a demarcação, lembrando que a presença de grupos indígenas foi um dos "fatores determinantes" da criação do Estado, o que anularia a tese de que a grande presença desta população prejudicaria a economia.

Sobre a questão da soberania, o parecer ressalta que há outras áreas indígenas em faixa de fronteira no país, citando como exemplo a yanomami, "toda ela em faixa de fronteira, em território de 10 milhões de hectares".

O estudo antropológico realizado pela Funai (Fundação Nacional do Índio), que também foi alvo de críticas dos que são contrários à demarcação contínua, foi defendido pela PGR, para quem o estudo foi realizado "por profissional habilitado" e demonstra "não só a posse tradicional e imemorial dos grupos indígenas sobre toda a extensão da área, como a necessidade de demarcação de faixa contínua de terras, de maneira a preservar a cultura indígena nos moldes já descritos."

Para o presidente da Funai, Márcio Augusto de Meira, uma decisão do Supremo pela mudança na demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol "seria uma perda do direito constitucional dos índios ao reconhecimento de suas terras. Queremos que o direito seja confirmado pelo Supremo", completou.

Fonte: www.noticias.uol.com.br

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